quarta-feira, 18 de julho de 2007

Dialectos

Amor: Começo por me apresentar, não que seja necessário porque nenhum sentimento será mais famoso que eu. Mesmo que não me conheçam pessoalmente, tenho a certeza que já ouviram falar de mim. Sim sou eu o amor. Eu sei o que estão a pensar. Sim, eu o selvagem idiota que se lembra de vos ocupar o corpo inteiro quando bem lhe apetece, afinal tem maneiras de boa educação. Sabem, eu apenas sou selvagem no que toca ao meu belo trabalho. De facto mesmo dependendo de um corpo presente para o efectuar, nunca tive horas de entrada ou saída, faço simplesmente o que me parece bem para a altura. Também já se podem considerar com bastante sorte se alguma vez vos preenchi com a minha extraordinária presença por uns breves segundos. Tenho tanto que fazer, e tantas pessoas para visitar que sinceramente nem sei porque se queixam tanto se pelo menos uma vez na vida me sentem verdadeiramente. Eu sei que deixo sequelas, e por isso uma vez que vos tenha visitado, algo de bom permanecerá em vos para o resto da vida. Deixo-vos sempre fragmentos microscópicos de mim para vos aquecer a alma eternamente, por isso ando sempre tão exausto. Sim, e ainda me atiram insultos e esse tipo de aberrações por me terem tão pouco. Sabem se eu deixasse mais de mim sempre que visito alguma pessoa, já não havia amor no mundo há muito tempo. É claro que isso já se diz, mas é mentira. Estas notícias de boca em boca, irritam-me bastante. Sabem um sentimento também tem direito ao seu descanso? Tenho que recuperar forças, para continuar no meu esplendor. E este descalabro de depressões que por ai anda? Deixa-me doente. Então um sentimento tão belo como eu visita-os por um pouco, e ainda há problemas depois disso, porque simplesmente não sabem usar a cabeça, e reviver essa altura durante algum tempo pelo menos, e construir uma vida baseada em mim?!

Ódio: Pois claro que não. Então existo eu, claro, para os consumir aos poucos e assim tornar-me cada vez mais viva. Estes humanos completamente desprovidos de controlo, não são capazes de me resistir. Sim, sempre me considerei uma tentação. Todos me querem mesmo sabendo que vos trarei apenas infelicidade. Eu sou aquela que vos chama com um sussurro e vocês nem pensam duas vezes, e seguem-me logo. Claro que no inicio se sentem mais fortes, mais capazes de fazer o que vos apetece sem se sentirem presos a ninguém, mas eu sou mais esperta que vocês, seus palermas. Depois destes anos todos ainda não perceberam a minha jogada? Eu traio a vossa confiança num piscar de olhos, e quando vocês menos esperam nessa vossa sede de mim, eu tiro-vos tudo o que têm, e ficam sem nada, um vazio que vos ocupa, e eu completamente repleta de mim, e com mais forças para continuar. Mesmo assim continuam a procurar o meu apoio. Enfim, eu sou o sentimento mais feroz, mais esperto, até consigo fazer-vos deixar de pensar correctamente, apenas para me sentirem por completo. Sim, eu sei que esse amor que por ai anda, a dizer que é o maior, e essas chachadas de que tanto se gaba, também vos tira um pouco da razão, mas eu sei que sou melhor. Até mesmo, porque quando ele voz deixa, burros como vocês são, não percebem que podem ficar com a luz dele por dentro na mesma, e então chego eu, ilumino-vos ainda mais, preencho-vos com linhas de fogo invisíveis que vos cegam, e logo de seguida mergulho-vos na escuridão. E é ai que vocês erram. Eu fico com o que ele deixou em vos, e vocês sem nada. É que podia ser uma questão de sorte, mas não, posso repetir estes golpes vezes sem conta, que sou sempre bem sucedida.

Razão: estarei correcta se ignorar o que foi antes dito? Sentimentos completamente abstractos são a fonte de todos os males. Seja amor, ódio ou qualquer outro que se possa sentir, mesmo que na sua prepotência de acharem que não sou necessária, sou apenas porque se não existisse não saberiam o que estão a sentir. Como actuariam sob influência do ódio, se eu não existisse, para vos fazer os planos, para vos traçar as metas, para vos fazer sobreviver na escuridão? E o amor? Mesmo que me deixe levar no seu encanto, porque sempre me cativou pessoalmente, como saberiam que o sentem sem eu vos dizer? Como saberiam que eu fraquejo na sua presença se eu desaparecesse por completo? Como saberiam que fico baralhada quando apenas sentem, se não vos avisasse?! Nem o mais tolo dos tolos, está livre de mim. Sem sentimentos, não posso viver claro, pois não teria muito que racionalizar, não saberia o que é o bem ou o mal de acordo com os seus efeitos, e não poderia alertar. Necessito deles para me formar, para ter noção dos acontecimentos que me causam alegria ou tristeza, que trazem saúde ou doença, mas quando estou formada, posso imita-los na perfeição, apenas com a minha força de vontade. Posso fazer-vos acreditar que sentem, quando apenas pensam que sentem. Essa é a minha grande vantagem sobre eles. Eles ocupam-vos durante um curto período de tempo, apenas para se darem a conhecer, e depois sou apenas eu que vos controlo. Sou tudo o que têm a maior parte da vida, sou eu que vos prendo a alguém ou a varias pessoas, sou eu faço recordar dos efeitos que o amor teve, e que o ódio pode ter. Sou eu que vos recordo dos momentos felizes e infelizes que viveram. Sem mim que seriam? Não seriam porque não sentiriam, e apenas o vazio seria o vosso companheiro de viagem.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Alberto Caeiro

"Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar."

Apesar de não ser um poema meu como se pode ver, é dos meus poemas favoritos e descobri-o há relativamente pouco tempo. Acho que o é porque descreve bem o sinto quando esses sentimentos me preenchem. Obrigada Daniel por o teres dedicado a mim nesta altura da tua vida.

Acordar

Acordei a pensar em ti. No teu cheiro. Nas tuas mãos. No teu sorriso. Nos teus olhos. No teu olhar. No teu antigo olhar. Será que estas noites nunca vão acabar? Estas noites que me deito a pensar em ti. Estas noites que sonho contigo, com o teu olhar, com o teu tocar, com o teu cheiro. Acordo e parece que ainda te sinto sobre a minha almofada e na minha cama, onde te deitaste tantas vezes. E eu ali contigo.
Acordo e sinto as lágrimas que já não choro levarem-me a ti. Como queria acordar outra vez como acordava. Sentir os teus olhos em mim. E olhar para ti e saber que não poderia estar em qualquer outro lugar senão a teu lado. Dói. Dói e não deixa de doer. Saber que apenas eu sinto tanto a tua falta. Que nada vai voltar atrás e não posso seguir o caminho mais fácil. Voltar para ti. E tu voltares para mim. Poder olhar-te, poder tocar-te, poder sentir a tua pele e todos os teus pequeninos defeitos. Continuas dentro de mim como sempre estiveste. Tu, ou aquele que amei. Aquele que amo. Aquela ilusão que me faz agarrar à tua memória e dizer que te quero. Mas o que foste não vai voltar. O que fomos não vai voltar. Continuo a olhar para ti como sempre, mas o teu olhar mudou. Continuo a querer tocar-te como sempre, mas o teu toque já não existe. Continuo a querer falar-te, mas já não respondes como eu esperava. Estás diferente. Quando falas já não dizes tudo o que eu quero ouvir. E tenho medo. Tenho medo de te perder. Tenho medo que te tornes num desconhecido. Tenho, principalmente, medo de nunca mais amar ninguém como te amei. E medo que tu não sintas nada do que estou a sentir.
Tudo parece tão fácil para ti. Eu grito e choro, e tu aceitas. Aceitas e continuas em frente. E eu continuo a acordar com a tua ilusão, e a adormecer com o teu cheiro cravado na minha cama, na minha almofada, em mim. E sonho, sonho que nada se passou, que continuamos inocentemente a amar-nos, a tocar-nos, a sentir.
Acordo, e mais uma vez não te sinto mais. Ficou a ilusão do teu beijo e o teu olhar transparente que me queima. E continuo a querer-te como sempre. As lágrimas caem, e arrependo-me das decisões que tomei. Mas estão tomadas. E um dia vou deixar de chorar. Um dia vou deixar de pensar. Vais deixar de estar dentro de mim. Deixar de estar cravado na minha pele, nos meus olhos, na minha alma, no meu coração.
E vou acordar e não estarás a meu lado.

Chuva

Começou a cair. Lentamente e depois com a força necessária para se fazer sentida.

A chuva.

Gosto de a sentir molhada no meu rosto, nos meus cabelos e nos meus dedos.

A chuva lava a alma. Espero que me lave os pensamentos também. Espero.

Os pensamentos correm como um comboio em movimento. Sou uma passageira e vejo o sol da pequena janela que me sobra para o mundo. Queima-me. Sinto a pele a estalar. É fogo que queima. Agita. Apaixona e aquece demasiado o que deveria permanecer apaziguado. Os pensamentos saltam agora. Este fogo vai fazê-los fugir. Consigo pressentir. Não consigo impedi-los.

Não consigo parar de pensar. Eles não param de correr. Correm, baralhados, rastejam, caem, tropeçam uns nos outros, atrapalham-me. Se chovesse, eles podiam acalmar. Mas não. Não chove e não param de me atormentar. Sempre o mesmo calor. Sempre o mesmo fogo a queimar-me a alma.

Quero pensamentos calmos e preciso de sentimentos resolvidos. Virar paginas e paginas da minha vida já escritas, lidas e relidas, reflectidas, analisadas e pensadas. São os pensamentos agitados que me fazem tomar decisões que não tomaria em tempo de chuva. São os sentimentos reprimidos que afugentam os meus pensamentos e os fazem correr desenfreadamente. Como se de mim própria quisessem fugir.

A chuva que os leve.

A chuva que os lave.

A chuva que os faça parar.

Que me faça parar também.

Se não foi a chuva que lavou a minha alma, foste tu que a levaste quando partiste. Se assim foi, então mata-me mais um pouco. Viver uma meia vida não me chega. Sofro demais. Nunca chegou nada pela metade.

Mata-me um pouco mais. Não te preocupes. A chuva trará nova alma para o meu corpo. E nessa altura, nessa altura sim! Os pensamentos abrandarão. Os pensamentos marcharão lentamente ao sabor da minha vontade. Aprenderam como a chuva a mover-se ao sabor do vento.

A chuva por fim apagou o fogo que me queimava por dentro. A chuva parou os pensamentos fugitivos.

Novamente, sou uma só. Com alma, pensamentos e sentimentos.

Não sou mais passageira no comboio da minha vida. Comando-a. Tenho experiência. Não haverá acidentes, já não tenho pensamentos fugitivos no caminho.

Mataste-me mas eu renasci. E melhor.

Sorriso

A noite já estava escura quando cheguei. Tobias olha-me com aqueles olhos verdes de quem percebe que é mais um dia igual a todos os outros, felizmente para ele. Descalço os sapatos pretos e ponho os pés no chão frio. É o que me sabe melhor de toda a rotina monocórdica da minha agenda. Percorro a casa familiarmente desconhecida como se ninguém la vivesse, apenas a minha sombra, ou o que dela resta à luz da vela acesa no quarto. Achei melhor deitar-me, mas antes tomar um banho quente para não tingir os lençóis com o cheiro do meu corpo, e denunciar naquela casa uma presença viva. Não esta de acordo com as regras, não de acordo com as minhas regras. Ninguém me vem visitar para me preocupar com isso, mas a evidenciar tão nitidamente um corpo numa casa parece-me sempre uma coisa que não quero fazer. Devo gostar dela inabitada de mim, apenas assim me consigo perceber. Seja o banho quente então. Uma chávena de chocolate quente, um cigarro na varanda e leitura de ocasião apenas para não pensar demasiado antes de adormecer. Vou deitar-me finalmente e os lençóis brancos estão frios como sempre. Tobias não chega para os aquecer na minha ausência diária, mas não deixa de ser um bom gato.

Estou a levar algum tempo a adormercer mas finalmente perco a noção normal dos sentidos e o meu peso relaxa sobre o branco. De repente encontro-me num lugar escuro. Estou sozinha no meio de toda a escuridão e tenho medo. Tento tactear a minha cama e a parede do quarto mas não consigo atingi-las. Estou a ver uma luzinha amarela ao fundo, devo ter deixado alguma luz ligada pela casa. Tento levantar-me e sair da cama para a desligar, e pelo menos mergulhar nesta escuridão assustadora mas que me dá prazer no entanto. Sinto que estou em mim no escuro e que me conheço, que consigo falar comigo sem ter de me julgar. Estranho, não consigo sair da cama, parece que não tem fim. Vou até à luz mesmo por cima da cama. Quando lá chego, vejo uma menina estranhamente familiar segurando uma vela. Penso como ela é desagradável à vista, mesmo que os seus caracóis escondam a maior parte do seu rosto. Estou mais preocupada no momento com o facto dela estar dentro do meu apartamento. Falo com ela mas ela ignora-me ou então não me ouve. Grito e começo a desesperar, mas ela nem levanta os olhos para mim.

- “ O que queres de mim? Levar-me á loucura?”

Ela finalmente levanta os olhos e num pequeno instante responde a todas as perguntas. Os seus olhos castanhos brilham à luz da vela, e uma lágrima corre-lhe desajeitadamente pela face.

-“ Quero levar-te à razão. À loucura estás a levar-te a ti mesma.”

Sei quem ela é. Sei quem somos. Somos a mesma mas com idades diferentes. Nada do que estava a viver está a fazer sentido mas tenho esperança que ela, ou eu, me explique.

- “ Logo verás o sentido. Tem paciência. Tens de aprender a ter paciência.”

Parecia saber muita coisa, muito mais que eu. Mas se eu sou ela, ou ela é a minha pessoa noutro corpo, como pode saber coisas que eu não sei?

Começamos a caminhar, e o corredor parece-me estranhamente longo e sombrio. Se calhar no meio de tanta infamiliaridade com a minha própria casa, nunca reparei no seu comprimento. É possível.

Passamos por fotografias da minha infância, da minha família, dos meus antepassados, com amigos, de tempos felizes. Não, não fui eu que pus estas fotos aqui. Tenho a certeza que não estão aqui. Como posso estar a ve-las tão nitidamente? Como foram aqui parar?

-“Fui eu que as coloquei nestes mesmos sítios. Gosto de fotografias. Tu também gostas, apenas não te lembras. Tens de te lembrar.”

Mas eu lembro rapariga. Eu lembro tudo agora sim. Lembro-me como tenho saudades de todos que deixei para trás. Lembro-me sim, como gostava de paralisar um momento com o disparo de uma objectiva. Lembro-me dos tempos de menina, eu era assim. Tu.

Continuamos a andar, e chegamos a uma sala. Neste momento já sei que não estou em casa, estou noutro sitio qualquer, mas esta não pode definitivamente ser a minha casa. Estava completamente clara e eu não gosto de muita luz. Hábitos que se adquirem. Na parede central estava pendurada a fotografia dele. Pensei mas não me atrevi a perguntar. Porque me estavas a fazer isto, rapariga? Jurei nunca mais olhar para isto. Nunca mais olhar para trás.

-“Tens de ter coragem. Eu tenho e tu tens dentro de ti. É a ultima coisa que te peço antes de partir. Tem coragem para resolver os problemas dos quais decidiste fugir. Fugiste de ti também, sabes? E assim deixaste-me também, sozinha no escuro, tendo que te procurar.”

Não respondi. Não consigo olhar os olhos estrelados dela. Sei que o que diz está correcto mas não consigo, sou demasiado fraca para voltar atrás.

-“Adeus, Marília.”

-“Adeus, Princesa.”

Como um raio de sol, a gota salgada no seu rosto brilhou e ofuscou-me.

Acordei. Estava no meu quarto. Tudo dentro do normal, na minha casa desabitada. Ainda era cedo e tinha tempo de fazer, o que mesmo a dormir, já tinha decidido fazer.

Levantei-me. Vesti-me e nem me maquilho, não é preciso, ele sempre me conheceu ao natural. Saio de casa e nem tranco a porta de entrada. Ninguém vai querer ficar com um apartamento morto.

Conduzo até ao local onde sei que o vou encontrar e lá está ele. Depois de tantos anos, continua a ir aos mesmos lugares onde íamos juntos. Olhamo-nos e como sempre o olhar ferveu. Caminhamos em direcção um ao outro e não nos falamos. Os olhos brilham como os de Princesa. Sempre foi isso que gostei nele. Olhamo-nos durante o que pareceu uma eternidade. Ele faz um som de como quem vai falar mas não quero que estrague o momento com palavras e perguntas fúteis, como tem sido a minha vida desde que me afastei deste brilho. Ponho o meu dedo nos seus lábios. Ele não fala mais. Põe a mão na minha anca e beijo-o. Primeiro suavemente e depois com a paixão reprimida durante tanto tempo. Tenho tantas perguntas para fazer, mas faço depois. Tenho que ter paciência.

E passamos a melhor noite desde que nos conhecemos. Sinto que ainda me ama e vejo-o nos seus olhos. Esqueci-me de tanta coisa sobre mim, por fugir dele, mas estou reencontrada. Os nossos corpos pesados caem agora sobre os lençois quentes da cama dele. Somos um só, e vamos continuar assim. Não quero nem posso mais fugir de mim.

Adormeço a pensar no sorriso de Princesa. Como daria uma óptima foto, pequena Marília!

Bullet Proof

Queria ser á prova de bala. Á prova de balas fortes que me atingem o coração quando menos espero. Á prova de abalos, de pequenos parasitas que invadem a minha calma. Á prova do que me consome a alma e me faz ficar murcha como uma flor que foi esquecida. Queria ser tudo o que não sou e nem sei o que quero desejar e amar. Queria saber o que procuro, mas as balas que cada vez mais me atingem a velocidades estrondosas, impedem a minha busca de razão. Estas pequenas balas que ninguém vê, e só eu as sinto. Magoam cada vez mais, uma mais que a anterior e assim perduram numa sucessão de barulhos ensurdecedores, mas silenciosamente dolorosos. Queria ter defesas para estes pequenos sugadores de alma, que me vão deixando mais vazia. Queria saber o que sabem os que já não são inocentes. Queria saber como reagir e mudar o rumo que estou a tomar. Queria ter coragem, muita coragem, como se não tivesse medo de nada nem dessas balas que sempre me rodeiam. Queria, queria, queria. Mas não parece haver maneira de deixar de ser o alvo destas balas simplesmente malditas.

Será que se continuar imóvel, à espera da razão ela chega e torna-me resistente ao sofrimento? Queria saber o que fazer.

Ventos dançantes

Feliz feliz feliz. Sem razão aparente, feliz. Como os que sabem o sentido da sua vida, ou parecem sabê-lo, como os dementes que não conhecem o vazio que nos habita, como uma qualquer pessoa que observa uma obra de arte e um rio a correr. Feliz, como se amasse, sem amar. Ou amo, só já não te amo a ti e sim a todas as pessoas que me rodeiam e me fazem sentir calor, a todas as coisas que me é permitido viver, e o douro a correr, e o Tejo também porque não? Sim, feliz como já não me lembro. Feliz só por saber que não estou sozinha, que sou livre como o vento que passa agora pela janela aberta do meu quarto, vento quente e vento frio, tanto faz, sou livre e isso é que importa. Sou livre e amo o que quero e o que me faz sentir bem. Feliz, só isso. Só quero que esta sensação dure para sempre, embora saiba que isso é impossível. Para já vou aproveitar este sentimento de preenchimento e vou dançar como se nunca tivesse dançado antes, sem ninguém a ver, a musica a tocar dentro de mim, apenas sentir o chão aos meus pés e o vento a dançar comigo.

Contigo

Esta a ficar escuro e tenho mesmo que me ir embora, não posso mesmo chegar outro dia atrasada a casa. Estão a acabar-se as ideias para as minhas histórias inventadas rapidamente, para não ser necessário responder a perguntas às quais não faz sentido responder. No caminho vejo o céu em tons de vermelho, céu de verão, e penso como seria bom poder vê-lo assim todos os dias com o mesmo brilho nos olhos que vejo hoje. As pequeninas luzes que me fizeram olhar o espelho da tua alma, logo na primeira vez que nos cruzamos e o mundo pareceu ter parado ali por uns instantes apenas para nos olharmos, estas pequeninas luzes brilham agora nos meus olhos. O dia foi perfeito, apenas perfeito. Andares a meu lado simplesmente sob este céu maravilhoso, mesmo que chovesse e as cores que nos iluminaram hoje já lá não estivessem, bastava acompanhares-me passo a passo para me sentir feliz. E fazes-me feliz apenas com esses pequeninos gestos. Mesmo que nunca te possa tocar, beijar ou confessar o calor estranho que sinto quando te vejo todos os dias, na tua perfeição imaculada de quem não tem uma única preocupação na vida e é livre, com o teu olhar puro e atraente como quem não sabe a impressão que causa á sua volta ou isso não lhe interessa minimamente. És o meu mistério adorado que me prende a esta felicidade alimentada com tão pouco, mas incapaz de morrer.

E fazes-me feliz, já o percebi. Espero que esta sensação nunca mude, porque este ponto de satisfação é demasiado confortável para ser perdido. Assim tudo me parece perfeito, mesmo que não seja.

Parei

Querer tudo e ser resumida a nada. Feita em pó varrido para debaixo de um qualquer tapete. Despedaçada por uma mão fraca e sem jeito para me partir, como se fosse um pedaço de metal frio e impessoal. Como se fosse um fantasma do que fui e sou. Como se não valesse a vida que tenho. Como se nem existisse e os meus actos não significassem nada. Sou livre para fazer o que quero, mas não sei o quero fazer agora que o sou. A indecisão do sentimento e a razão bem definida. Não quero ser correcta nem muito menos educada agora. Quero dizer o que me faz sentir assim. Mandar embora este sentimento hediondo que me afoga o coração em cordas apertadas. Suponho que o que me faz sentir assim não seja a profundidade dos sentimentos mas a superficialidade dos actos. Já estava preparada para isto mas assim não consigo. Não posso dizer que não senti. Senti e tenho pena, pensei que fossem menos profundos do que isto, mas enganei-me. Sinto-me desiludida com o mundo e sem vontade de acreditar nas pessoas. Uma enorme sensação de que tudo se resume á igualdade e á banalidade do desconhecido que passa por mim numa rua clara até a ti que me beijas no escuro. O mundo lá fora continua a correr como se a vida de cada um não importasse. Parece querer privar-me de sentir. Sou resistente eu sei, mas não para sempre. Preciso de descansar e de me abstrair disto tudo que me rodeia. Não posso dizer que me arrependo do que fiz, sei que o fiz porque queria e me fez bem na altura. Mas não repetiria, porque não vale a pena. Não vale a pena sentir para depois ter que esquecer. Não vale a pena tentar para logo a seguir desistir. Nada vale a pena. Só este cigarro que fumo sozinha e os meus pensamentos. Parar. Tudo parou ou pelo menos parece que parou. Apenas ouço um pequeno ruído de fundo que parece ser música enquanto escrevo e tudo no seu devido sitio. Menos eu. Está tudo parado e se calhar é aqui mesmo que devo estar, parada também. Nem este pulso que escreve devia mexer. Vou parar. Vou fundir-me com o silêncio assustador deste lugar e parar. Parar de escrever. De pensar. De sentir. De viver.

Fica

Fica só mais um segundo. Apenas para permanecer sempre comigo o teu cheiro a verão doce. Deixa-o aquecer-me na fria penumbra das noites solitárias.

Fica só mais um minuto. Permite-me o teu olhar e a magia real dele em mim. Olha-me por este fragmento de tempo insignificante, sei que guardarei no meu próprio olhar os teus olhos castanhos, para reconstruir o teu fantasma perfeito depois da hora de partida.

Fica só mais uma hora. Uma pequena hora para te falar dos planos que tinha para nós. Fala comigo também, não quero correr o risco de me esquecer do som da tua voz. Tenho medo de ficar rodeada por apenas um silêncio profundo, para me acompanhar os dias claros e abafados, sem a tua leve brisa com sabor a frescura.

Fica muito mais tempo. Fica porque te peço. Tenho que sentir as tuas mãos rugosas e fortes para me sentir em mim. Preciso dos teus beijos que me fazem render a ti sem qualquer desconfiança.

Penso isto tudo mas quando te observo a descer por essas escadas limito-me a respirar. Olhas-me e caminhas agora na minha direcção. Eu permaneço estática, incapaz de mover um único músculo do meu corpo para te impedir de fazer o que é agora inevitável. Fico assim, presa nos teus olhos e na expectativa dos teus actos. Estás próximo o suficiente para me deixar guardar o teu aroma de fruta e calor. Agarras agora as minhas mãos e sinto tudo mover-se com uma extrema lentidão. As tuas mãos. Ouço-te falar mas pareces-me demasiado longínquo para te perceber. Percebo agora.

- Vou agora, Lídia.

Tudo que te quero dizer passa pela minha cabeça como um relâmpago em céu escuro. Aproximo-me ainda mais de ti e tudo se resume a um sussurro ao teu ouvido.

- Fica comigo só mais uma noite.

Deixa-me estar

Deixa-me estar em mim
E não faças menos do que espero
Tenta perceber que quero
Por em tudo um fim
Pára de olhar, pára de mentir
Os teus olhos já não dizem mais
Que um frio imenso de sentir
E os meus o desprezo dos sinais
Do amor que afinal nunca vivi

Deixa-me, não insistas
Levas-me sempre para o outro lado
Onde tudo é apagado
E só tu mesmo existas
Não suporto nesse lugar
Ouvir o som da tua voz
O cheiro amargo do teu tocar
E o beijo do terror
De estarmos juntos e sós.

Deixa-me, e não deixes nada de ti
Apenas a tua ausência
E as marcas que fizeste
No meu coração agreste
Fica longe, e não me faças repetir
Que o teu ser me enjoa
Se já nem consigo fingir
As palavras que dissemos à toa.
E das lembranças que ficaram
Olhei para elas e sorri
Porque um dia me mataram
E no outro renasci.

Aceno da manha

Tropeço no sorriso que é teu e meu por pensamento.
Sabendo o que consigo em ti e o que necessito sem o teu odor em mim.
Sobes pelo meu sangue onde te encontro todos os dias
No recanto do meu coração e no esplendor da tua alma.

Atento ao teu caminhar por gosto e prazer
E falo o teu falar para ficares em mim cravado.
Cheiro o teu tocar na insignificância de um aceno
Apenas para preservar a sanidade de um louco
Em mim que assim me sinto em ti.

Desce as escadas de mim e pousa onde quiseres
Sei que não sentirei diferença alguma
Pois estando contigo estou apenas comigo
E não sei já viver sem ti.

Fica em mim como se não estivesses onde estás
Dir-te-ia em consciência que noto a tua presença
Digo-te de coração que não sei como me sentiria sem ela.

Mesmo que ocupes só uma pequena parte de mim.
O meu pensamento,
Ele chega para me controlar o dia e a noite,
E tudo o que faço. Pois faço-o a pensar em ti,
No teu cheiro, odor, no teu olhar e no
Breve aceno, que me deste,
Quando passaste por mim esta manha.

o primeiro

Decidi criar este blog para escrever o que sinto, o que penso, o que me apetecer escrever, como é o caso do que estou a escrever agora.
Para quem sabe e conheçe, o outro blog continua la, mas neste vou postar apenas os textos menos pessoais.

para já vou por aqui alguns textos antigos, e depois logo se verá o que vem para estes lados.