sexta-feira, 30 de maio de 2008

Grades

Cansam-me as pressões e cansam-me os olhares. Cansam-me as prisões que criamos por querer, por temer. Cansa-me esse temer de sair da casca e mostrar o que é o ser do proprio. Cansam-me os que criaram esta ridícula ideia de viver preso para viver. Estou farta desta jaula que alguém me criou, ou eu, para não me sentir ameaçada pelo ar da rua. Estou farta de ver estas grades cinzentas, que não me deixam perceber nada com claridade. Nem os outros me verem a mim. E é por eles mesmos que estas grades existem. Farto-me e irrito-me com esta situação de criar pseudónimos de nós proprios para não ter de suportar criticas da verdade, que são as mais difíceis de ouvir. Farto-me dessas criticas também, e de não ouvir ninguém dizer que "cada um faz o que quer" é mentira. Irritam-me essas criticas vindas do nada e ditas por ninguém, mas que existem e queimam a pouca confiança que temos para sair daqui. Irrita-me esta sociedade de mentirosos, curiosos e maliciosos. Irrita-me saber que é por eles que estas grades estão à minha frente, e odeio-as. Odeio esta ideia sobrevalorizada que tem que se saber estar para ninguém comentar. Odeio, ninguém, ninguém mesmo, nem eu, conseguir ser sempre o mesmo para toda a gente, porque a casca está sempre lá, para nos lembrar do que a vida nos ensinou. Odeio ter aprendido isto tarde demais. Odeio que ninguém me tenha ensinado isto antes da vida se chegar à frente. Odeio que até as proprias mentiras, que são ditas por quase todos, tenham casca, e afinal ninguém as diz. Odeio esta estupida grade cinzenta que me está a impedir de ser livre. Odeio estar a ficar como eles, com medo de sair.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Tiago Bettencourt - O lugar

Já é noite e o frio
está em tudo que se vê
lá fora ninguém sabe
que por dentro há vazio
porque em todos há um espaço
que por medo não se ve
onde a ilusão se esquece
do que o medo não previu
Já é noite e o chão
é mais terra para nascer
a água vai escorrendo
entre as mãos a percorrer
todo o espaço entre a sombra
entre o espaço que restou
para refazer a vida no que o medo não matou

mas onde tudo morre tudo pode renascer
em ti vejo o tempo que passou
vejo o sangue que correu
vejo a força que moveu
quando tudo parou em ti
a tempestade que não há em ti
arrastando para o teu lugar
e é em ti que vou ficar

já é dia e a sombra
está em tudo que se ve
lá fora ninguém sabe o que a luz pode fazer
porque a noite foi tão fria
que não soube acordara noite foi tão dura
e difícil de sarar

mas onde tudo morre tudo pode renascer
em ti vejo o tempo que passou
vejo o sangue que correu
vejo a força que moveu
quando tudo parou em ti
a tempestade que não há em ti
arrastando para o teu lugar
e é em ti que vou ficar

eu já descobri a casa onde posso adormecer
eu já desvendei o mundo e o tempo de perder
aqui tudo é mais forte e há mais cor no céu maior
aqui tudo é tão novo tudo pode ser meu

e onde tudo morre tudo volta a nascer
em ti vejo o tempo que passou
vejo o sangue que correu
vejo a força que moveu
quando tudo parou em ti
a tempestade que não há em ti
arrastando para o teu lugare é em ti que vou ficar

já é dia e a luz
está em tudo que se vê
cá dentro não se ouve
o que lá fora faz chover
na cidade que há em ti
encontrei o meu lugar
é em ti que vou ficar.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Voar

se um dia voares
diz-me onde foste
nao quero ficar sozinha nos passeios.

se um dia fujires
diz-me para onde,
nao me quero ver sozinha nestas ruas.

tenho muito medo sabes?
de um dia olhar para o lado
e nao ter ver comigo como sempre

tenho mesmo muito medo
de um dia não te ver
nem sentir a tua presença

nao precisas de falar
so te quero a meu lado
não consigo viver um dia sem ti.

pensa por favor
na minha triste existencia
se um dia voares sem mim.

porque eu quero voar contigo,
um dia,
só um dia.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

O que será?

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo


Chico Buarque - À flor da pele